A Substância e o monstro patriarcal
- Juliana Gusman

- 4 de jul.
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Em O Segundo Sexo (1949), Simone de Beauvoir reconstitui aquilo que chama de “tragédia da mulher idosa” que, imersa na ideologia burguesa definidora da domesticidade e servilidade femininas, sente-se despersonalizada ao deixar de oferecer “riquezas frescas”. Para a autora, é na fronteira entre a juventude e a velhice que tal mulher, até então muito bem adaptada às exigências da ordem masculina, passa a enfrentar o desafio de controlar esses “dois aspectos de si mesma”. Coralie Fargeat, em A Substância (2024), eviscera as tentativas de autoconciliação de sua protagonista, Elizabeth Sparkle, interpretada por Demi Moore, cuja trajetória espelha sua ascensão e queda na indústria do entretenimento.
Já em derrocada em um desprestigiado programa televisivo de ginástica do qual é demitida ao completar 50 anos, a ex-estrela de Hollywood cede a apelos obscuros para testar, em si mesma, os efeitos da Substância que intitula o filme. Aqui, a desidentificação subjetiva com o duplo jovem, da qual fala Beauvoir, é levada a extremos: com a droga verde-ácido, a versão idealizada de Elizabeth ganha matéria, corpo e nome. A sua vivência paralela como Sue (Margaret Qualey) depende de um conjunto de regras que, sabemos de início, serão fatalmente desobedecidas.
Equivalentemente aclamado e repudiado pelos seus usos imoderados do body horror, A Substância se agarra a outros excessos. Há uma espécie de didatismo que parece desconfiar das suas audiências – exprimido, por exemplo, nos repetitivos flashbacks empenhados em assegurar, sem ranhuras, a continuidade narrativa –, realçando a previsibilidade do roteiro. Também soa copioso o apelo quase orgástico à cinefilia do público, numa volumosa citação visual que, mesmo sendo bem realizada, ainda referencia e reverencia um cinema de horror canônico. Não se trata de desconsiderar a qualidade inegável de obras como O Iluminado (Stanley Kubrick, 1980), A Mosca (David Cronenberg, 1987) e Carrie (Brian de Palma, 1976), ou as possibilidades críticas de sua deglutição em novas imagens. Mas é justamente este afiançar que, em parte, arrasta um filme de pretextos e pretensões feministas às zonas estéticas da monstruosidade patriarcal. Nem lá, nem cá, A Substância, assim como suas personagens, se confronta, talvez mais inconscientemente do que elas, com as armadilhas da sua própria ambiguidade.
O gênero do horror, na verdade, é dado às aporias. Como nos lembra a teórica Barbara Creed, seu aspecto fundacional está na noção de abjeção: na elaboração narrativa e visual daquilo que, diante de uma ordem simbólica posta, é considerado obsceno. O abjeto deve ser eliminado da cena pública por assombrar fronteiras, regramentos e posições socialmente instituídas. Nas suas representações clássicas, o cinema de horror delimita e reitera, ritualisticamente, a normatividade – cismasculina, branca, colonial – amedrontada e supostamente defensável, ao mesmo tempo em que projeta, para o bem e para o mal, aquilo que perturba a sua estabilidade – não raro, a força vital e sexual do corpo das mulheres. O “feminino monstruoso”, analisado na obra matricial de Creed, é a concretização cinematográfica – tão reacionária quanto potencialmente disruptiva – das ansiedades e repulsas vigentes.
A Substância ambiciona subverter essas dinâmicas iterativas. Há, de fato, um deslocamento do masculino normativo para a esfera da abjeção – sobretudo com as formas de enquadramento de Harvey, o produtor antagonista kitsch de Dennis Quaid, distorcido por grandes angulares e por um minucioso trabalho de som que amplifica repugnâncias. Porém, não há nenhum empenho em desvincular Elizabeth dos antigos estereótipos da perversidade. Contra uma tendência observada por Creed no Feminist New Wave Cinema, investigada em seu livro mais recente, o monstro feminino de Coralie Fargeat não é uma figura libertadora e combativa. Elizabeth se transmuta na bruxa envelhecida e envilecida de sempre, mas sem os poderes que poderiam lhe trazer alguma capacidade de agência, contestação e revolta. A textura de sua pele, progressivamente manchada, enrugada e escoriada – uma punição pelo mau uso da Substância – é filmada com o mesmo plano detalhe e sobreposta aos mesmos efeitos sonoros que potencializam a agonia das cenas mais grotescas. Se no âmbito narrativo a diretora tensiona uma descartabilidade etarista, seu filme confirma, plasticamente, o chocante martírio do envelhecimento.
Sem abalar significativamente o imaginário hegemônico do “feminino monstruoso”, a criatura de Fargeat se volta, não obstante, contra si mesma. É Beauvoir quem nos lembra, mais uma vez, da relação sempre enigmática entre o “eu” e o seu duplo – algo que poderia ser mais densamente explorado no filme, que tem dificuldade em nos convencer de que, realmente, estamos lidando com fragmentos de subjetividade de uma mesma pessoa. De qualquer maneira, ao parir Sue de sua espinha dorsal, Elizabeth se converte na “mãe arcaica” da qual fala Creed, que ameaça devorar e reincorporar aquilo que gerou. A Substância reedita a ambivalência entre esta mãe e sua “filha”, cuja incompatibilidade também é descrita por Beauvoir, na sua interpretação da mentalidade burguesa, como tirânica e destrutiva. Entre mulheres, não há nenhuma saída emancipatória. Quando uma cisão definitiva entre Elizabeth e Sue é feita, só lhes resta cumprir o triste destino da aniquilação mútua.
E nesse horizonte de (não) existência, o corpo, historicamente depreciado pela racionalidade dominante, é mais uma vez rejeitado como território de ação e transformação política. Seja em suas versões rivalizadas anteriores ou em sua extravagante encarnação final, Elizabeth-Sue aponta para a impossibilidade da reapropriação daquilo que nos foi tão visceralmente saqueado pelo capitalismo-colonial-patriarcal. Sua redenção vem, literalmente, com tal abandono: Coralie Fargeat decapita sua personagem que rasteja, como uma Medusa impotente, até o símbolo máximo de sua ilusão. No seu afã por denúncias, a promissora diretora francesa não só mantém as mulheres presas ao campo da monstruosidade abjeta, como renuncia às rebeldias – afetivas, eróticas, carnais – que podem insurgir da nossa inadequação ao mundo dos homens.

Este texto foi originalmente publicado na Revista Madonna



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