20ª CineOP: Sol na cabeça, cinema nas veias
- Juliana Gusman

- 30 de ago.
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Fazia frio em Ouro Preto. A data praxe da CineOP garante os festejos e cortejos juninos, mas exige do público que ocupa o pico da cidade, diante da enorme tela instalada na Praça Tiradentes, alguma resistência. Porém, na noite do dia 27 de junho, um vento barroco soprou calor e feitiçarias. A santa padroeira da desobediência conjurou seu pequeno milagre: com seus cabelos de fogo, pôs a cidade em chamas.
Ritas (2025), de Oswaldo Santana, integrou a Mostra Temática Histórica do evento – que também se bifurca nos eixos Preservação e Educação –, neste ano, voltada para o humor das mulheres no cinema brasileiro. Como curadora assistente, teleguiada pela sensibilidade intuitiva de Cleber Eduardo, coube a mim justificar a inclusão de Rita Lee em nossa convenção de bruxas. O humor inegavelmente lhe pertence, concordariam até os pouco entendidos; sua veia cinematográfica, entretanto, não parece tão óbvia.
É verdade que o corte de um minuto e meio de sua participação pontual como a alucinada Dona Julieta em Durval Discos (2002), de Anna Muylaert, ganhou um novo fôlego de circulação nas redes. Mas Rita também emprestou sua mutabilidade a Raul Seixas, em Tanta estrela por aí (Tadeu Knudsen, 1992), sua voz a Rê Bordosa, em Wood and Stock (Otto Guerra, 2006) e seu quê de gringa a Mary Shadow, em Dias melhores virão (Cacá Diegues, 1989). Foi, ainda, um pirata em A primeira missa ou tristes tropeços, enganos e urucum (Ana Carolina, 2014), Scarlet Antibes em Sai de Baixo e, antes de ser Lita Ree no finado Twitter, encarnou seu alter ego na novela Vamp.
Essa transa com a atuação e o cinema começa no escurinho das quatro salas que contornavam o antigo casarão de sua infância na Vila Mariana e com a paixonite súbita por James Dean, respingando na ode indiscreta a Hitchcock em Vítima (1985), ou no mar de plástico felliniano da capa do álbum Flagra (1982). Em Ritas, Oswaldo Santana costura essas várias faces da Eva do rock nacional, somando ao seu filme-colagem os últimos (auto)registros da cantora já reclusa, ao lado de suas plantas, bichos e Roberto de Carvalho, o seu galã do extracampo. Entre o gosto do passado e o sabor do presente, nos lambuzamos com arquivos vivos.
O documentário não mira o impossível – uma reconstituição completa da trajetória da multiartista e plurimulher –, mas alcança uma singela façanha: entre acervos pessoais e públicos – alguns bastante raros, como os flashes calientes da Miss Brasil 2000, a “favorita que nunca se viu” –, o diretor acolhe, sobretudo, fragmentos de uma autofabulação obstinada. Apesar das claras dissonâncias entre propostas fílmicas, parece que a máxima de Eduardo Coutinho, o mestre da boa prosa, conduz, aqui, os fantasmas da montagem: Ritas é um filme interessado em cartografar o arrojo de sua personagem ao dizer, com imoderadas doses de esculhambação e escracho, de si mesma. Importam menos os fatos do que os atos de fala. O documentário, como alerta a gemini-capricorniana em sua primeira aparição, é apenas “um depoimento” – irreverente e modesto, como aquela que retrata.
Há, é certo, uma cronologia biográfica em Ritas, que parte do “harém” de Charles, o patriarca da superfeminina família Lee Jones, e termina com o prenúncio da morte da caçula do clã. Mas, para reconstituir essa linearidade medular, o diretor embaralha seu material arquivístico. A pluralidade de Rita não reside apenas na sua versatilidade artística – ela é radicalizada pelos fluxos do tempo. Da loirinha dos Mutantes à senhora mística com os fios de Lua, as diferentes Ritas se ajuntam para reconstituir, com lapsos de memória e bom-humor, uma mesma história.
E há espaço para a música, evidentemente. Sem a imersão imobilizadora do breu absoluto entre quatro paredes, os corpos estavam mais soltos para batucar ritmos e fazer vibrar o chão. Cantava-se a trilha sonora em um coro baixinho e irresistível, às vezes entoado pelo latido dos cães de rua, que pareciam pressentir o amor transcendente de uma irrevogável protetora dos animais. As coincidências não pararam por aí: o mesmo sino que toca em uma cena, preciso e enigmático, da janela de Rita, que afirmava sua então serenidade na velhice, badalou sincrônica e imponentemente de alguma igreja ouro-pretana. Há coisas que não se explica. Afinal, a mulher-quimera “escancara tabus, mas não revela mistérios”.
Rita não foi a única a incendiar escrúpulos e sessões de cinema: outras magas ruivas com o “sol na cabeça” também iluminaram caminhos. O restauro recente de A mulher de todos (1969), de Rogério Sganzerla, exibido no contexto da Mostra Preservação no dia 28 de junho, recupera, além da eletricidade do seu jogo de cores original, a energia insubmissa e feminista de Ângela Carne e Osso, a “ultrapoderosa”, “inimiga número um dos homens”. Helena Ignez estava lá, resoluta, testemunhando as artimanhas e ironias do seu próprio olhar na recém-inaugurada e lotada sala Joaquim Pedro de Andrade, no anexo no Museu da Inconfidência.

Ângela Carne e Osso talvez seja a primeira Medusa do cinema brasileiro. Monstruosa, conjuga o insólito do humor e do horror, implodindo a ordem posta pela repulsa e pelo riso. Ela antecipa uma marca de um “cinema de mulheres”, que, a partir dos anos 1970, apostaria no absurdo e no non sense para tensionar aquilo que, na verdade, nunca fez muito sentido. A “vampira histérica” de Helena usa indisciplina do desejo para reclamar autonomias, como, poucos anos depois, faria a Pitty de Darlene Glória, num filme de outro teor e temperatura. No entardecer da CineOP, Os homens que eu tive (1973), dirigido por Tereza Trautman, alinhavou indomabilidades com sua estética-vulcão: como sugere Ana Maria Veiga, as convenções narrativas e a cadência plácida desta obra visionária, flexionadas por uma personagem que vive suas vontades muito abertamente, recobrem espectatorialidades acomodadas ou desprevenidas com a calma bruta da lava que escorre das entranhas da terra.
Tereza escreveu o roteiro de Os homens que eu tive aos vinte anos, após um trauma pessoal e no seio de uma ditadura militar, que censuraria o gozo livre da sua protagonista por quase uma década. O conservadorismo belo-horizontino, de onde partiu a denúncia fatal, não suportou a naturalidade de sua nudez, a fluidez do seu afeto ou o tesão das suas amizades. A redenção mineira veio tarde, mas oportuna. Tereza foi ovacionada por uma plateia majoritariamente jovem, seduzida pela impertinência distraída de Pitty. Com a imensidão de sua figura miúda, Tereza segurou o início da exibição, que começara alguns minutos antes do previsto, para contemplar os atrasados. Ela tem plena consciência da força e perenidade da sua obra e merecia, como Rita e Helena, nada menos que uma casa cheia.
Tereza costuma dizer que faz parte de uma geração amordaçada que, diante das agruras econômicas e políticas do país, fez filmes de menos – seu segundo e último longa foi Sonho de menina-moça, lançado em 1987. Algumas injustiças são irreparáveis. Contudo, reconhecer o seu legado – e o das outras pontas da tríade flamejante – na loucura criativa de Eliana Fonseca, Anna Muylaert, Marisa Orth, Sandra Kogut, Betse de Paula, Gisella de Mello, Inês Peixoto, Cris D’Amato, Alê McHaddo, Juliana Antunes, Sabrina Fidalgo, Fernanda Chicolet, biarritzzz, Clara Anastácia e Gabriela Gaia, mulheres que abalaram os ânimos da última CineOP, é celebrar a ousadia de quem arrombou a porta e invadiu a festa, para que tantas de nós pudéssemos, um dia, passar, dançar, filmar e gozar.

Este texto foi originalmente publicado no site Sara y Rosa



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